Igreja da Misericórdia
A igreja da Santa Casa da Misericórdia da Feira
Em 1566 os frades Lóios estavam alojados numa nova paroquial que foi sucessivamente ampliada; a escadaria de acesso à igreja e convento dos Lóios deve ter sido concluída em 1746. Em 1689 ou 1690 começou a construção do atual edifício da igreja da Santa Casa da Misericórdia. Assim, o início da construção desta igreja ocorreu durante a fase final da construção da igreja e convento dos Lóios. Consequentemente, a construção da igreja da Santa Casa da Misericórdia foi influenciada pela fase final de construção da igreja e convento dos Lóios, eventualmente até com partilha de alguns autores de projeto e artistas.
A igreja da Santa Casa da Misericórdia da Feira está construída na zona alta do centro urbano, o que permitiu o desenvolvimento de uma magnífica escadaria aproveitando o relevo natural do terreno. A seus pés, a caminho do convento e do castelo que da Misericórdia se avistam, como que colocados em tabuleiros para enfeitar, ficavam os passais da antiga igreja paroquial; era aí que em 1550 os Lóios estiveram para fazer o convento (1), projeto que foi abandonado para construir uma nova igreja paroquial de raiz, para o que aceitaram ofertas de terrenos de D. Diogo Forjaz Pereira, 4º conde da Feira. Embora o projeto tenha sido executado em pleno período barroco, tem profunda influência da arte maneirista que prolongou o grande ciclo renascentista. O gosto maneirista reflete-se sobretudo na decoração da fachada principal. Resultou um edifício maciço, com paredes grossas, de dimensão contida mas amplo. Cerca de 1880 a igreja mostrava-se como está na Figura 1, com uma frontaria simples na qual a porta principal tem as ombreiras de granito encimadas por pilastras; sobre a janela quase quadrada do coro alto, há um nicho em cantaria coroado pelo escudo nacional com coroa e cruz sobrepostas. De acordo com Rodrigues (2), no nicho está a imagem de pedra de Nossa Senhora de Campos, muito provavelmente datada de época anterior à construção da igreja (Figura 2). A torre sineira direita ostenta um sino, datado de 1760 (Figura 3), que provavelmente substituiu o inicial. A escadaria exterior em granito, datada do século XVIII, é constituída por vários lanços separados por patamares; com alguns pares de lanços paralelos, acaba num único lanço, que desemboca no terraço em frente da igreja. A meio da escadaria está completamente integrado um chafariz de inquestionável beleza também em granito (Figura 4), que tem estilo semelhante ao que está em frente da escadaria do convento. Cerca de 1880
a igreja e a sua escadaria estavam vedados por portão e gradeamento de ferro forjado. A Figura 5 mostra a igreja em 8 de Agosto de 1929, tornando-se evidentes algumas alterações entretanto operadas. Foram acrescentados pináculos em toda a extensão da empena e também adicionada uma inscrição sobre o óculo, em letras garrafais, que evidenciava que aquela era a igreja da MISERICÓRDIA. As casas e o fontanário lateral que estavam encostados do lado poente foram retirados, tal como o portão e o gradeamento, o que permitiu maior visibilidade e mais imponência do conjunto arquitetónico. A Figura 6 mostra a igreja em data anterior a Outubro de 1945, onde já se vê o edifício de assistência à criança datado de cerca de 1940. A Figura 7 mostra a igreja em 1980, felizmente já sem a inscrição sobre o óculo de gosto muito duvidoso, entretanto retirada em Outubro de 1945. A Figura 8 mostra a igreja em Outubro de 2005, com o óculo em cantaria de granito ocupado pelo mostrador de um relógio (Figura 3).
De um modo geral a arquitetura interior reflete a da nave da igreja do convento dos Lóios. Como já foi referido, o terramoto de 1755 fez cair parte da abóbada da igreja da Santa Casa da Misericórdia. Muitos dos primitivos caixotões com pinturas barrocas ficaram destruídos ou em risco de queda, tendo-se salvado apenas o antigo teto da capela-mor. As magníficas pinturas dos caixotões (Figura 9) que sobreviveram ao terramoto, mantiveram-se até ao início da década de 70 do século passado, altura em que umas obras mal conduzidas para conservações pontuais os fizeram desaparecer. Ainda se conseguem ver reminiscências dessas pinturas na capela-mor (Figura 10). A parte da abóbada danificada pelo terramoto obrigou à sua reconstrução, tendo sido na altura substituída a alvenaria por madeira. O chão da capela-mor e da nave é em cantaria de granito, em partes coberto por estrados de madeira. Além da porta principal colocada a sul, há duas portas laterais a meio corpo: uma a nascente que dá para um átrio lateral, outra a poente para acesso ao púlpito; na capela-mor, outras duas portas dão acesso à capela do Senhor dos Passos a nascente e à sacristia a poente. O púlpito assente numa mísula simples está na parede poente. Em cada uma das paredes da capela-mor há uma janela grande; na parede poente da nave há duas e no coro alto três. A capela-mor e a nave são quase da mesma largura. A memória de um ilustre provedor, Padre António Joaquim Ferreira, falecido em 1870 e que por morte deixou bens consideráveis à Misericórdia, é recordada na escultura da parede poente da capela-mor, onde estão as suas ossadas (Figura 11).
O magnífico retábulo do altar-mor (Figura 12), em talha barroca de madeira dourada profusamente adornada (Figuras 13 a 22), é da primeira década do século XVIII (2). É uma obra de arte de contida majestade e de grande riqueza escultórica, talhada por pelo menos dois artistas, quase por certo comuns aos que esculpiram o altar-mor da igreja do convento dos Lóios (2). A parte central do retábulo está dividida em duas zonas; a superior cavada em camarim, contém o trono eucarístico; a inferior encerra o sacrário, por si só uma bela peça de talha barroca (Figuras 23 e 24). Em 1754 o Santíssimo Sacramento foi colocado no altar-mor, o que significa que as obras de talha estavam então concluídas, quer no altar-mor quer no sacrário. No retábulo do altar-mor estão expostas quatro imagens: S. Francisco, S. Sebastião, Nossa Senhora de Campos e S. Nicolau (Figura 23). A imagem de S. Nicolau, com casula, báculo e mitra de bispo a abençoar, é do século XV, em pedra de Ançã e de oficina coimbrã (2). Foi provavelmente pertença da antiga igreja paroquial de S. Nicolau, onde depois veio a ficar instalada a Misericórdia. É, pois, uma imagem muito antiga, mas que está prejudicada pelos repintes a que foi sujeita.
A imagem de S. Francisco em madeira foi restaurada em 1638, o que quer dizer que é seguramente anterior a essa data. Provavelmente foi orago da capela de S. Francisco que ficou instalada na antiga igreja paroquial, onde depois veio a ficar instalada a Misericórdia. É também uma imagem muito antiga, mas que indevidamente foi sujeita a vários repintes que a descaraterizaram completamente. Sabe-se que ao lado da imagem de S. Francisco já esteve a imagem da Rainha Santa Isabel, que agora já não é património da Misericórdia. A imagem de S. Sebastião em madeira é do século XV, tendo a particularidade de representar S. Sebastião usando cuecas (2). Foi também sujeita a repintes que prejudicam a imagem. A imagem de barro de Nossa Senhora de Campos é provavelmente do século XVII, devendo ter sido trazida para a Misericórdia quando a confraria de Nossa Senhora de Campos aí se instalou. De acordo com as “Memórias Paroquiais do século XVIII” da autoria do padre José Pedro Quintela (3), quando ocorreu o terramoto de 1755 estava a decorrer a Missa, mas apesar da queda da abóbada, ninguém se feriu nem houve estragos nos altares. Por isso, logo após o terramoto se fundou na Misericórdia uma nova Confraria das Almas, à qual se juntou em 1768 a sua irmã vinda do convento dos Lóios, pedindo refúgio à Misericórdia. O padroeiro desta Irmandade era o Senhor do Bonfim, cuja imagem é a de Cristo Crucificado e que de acordo com o Padre Quintela em 1758 estava “… colocado no Altar mayor …”. Este registo levanta algumas dúvidas. Como o altar-mor estava concluído em 1754 com a configuração atual e as imagens do Senhor do Bonfim são usualmente de grandes dimensões, seria possível colocar uma imagem dessas no altar-mor? Por outro lado, parece que em 1758 só pertenceriam ao património da Misericórdia imagens de Cristo Crucificado com dimensões insignificantes para terem presença condigna num altar-mor (a imagem de grandes dimensões do Senhor Morto, que pode ser apresentada como Cristo Crucificado, só veio para a Misericórdia em 1787 com a Confraria do Senhor dos Passos). Seria apesar de tudo uma imagem de grandes dimensões que estava no altar-mor em 1758? E que destino teve essa imagem que já não é património da Misericórdia? Ou seria uma das imagens de menores dimensões que estava no altar-mor? Era interessante eliminar estas dúvidas.
O retábulo da parede nascente é também de magnífica talha barroca de madeira dourada, da primeira década do século XVIII (Figuras 24 e 25), mas a mesa do altar é posterior (2). Este retábulo também tem forte influência dos retábulos do convento dos Lóios, sendo eventualmente comuns os projetistas e entalhadores. Neste retábulo está uma imagem de Nossa Senhora da Conceição cuja datação não é conhecida com rigor; é, no entanto, anterior a 1758, pois consta das “Memórias Paroquiais do século XVIII” sobre a Vila da Feira, enviadas em 30 de Abril de 1758 pelo padre José Pedro Quintela à Real Academia de História, para dar cumprimento a uma determinação do Marquês de Pombal (3). Em tamanho natural, foi talhada em madeira com o estilo das “imaculadas” de Murillo, sendo de autor desconhecido. Tem uma beleza e serenidade que só ao vivo podem ser usufruídas plenamente. As roupagens são exuberantes; o vestido branco e o manto azul claro têm movimentos amplos bem ao gosto da época barroca (Figura 26). Os pés invisíveis apoiam-se no Globo circundado pela serpente que representa Satanás; a Lua emerge do Globo circundado por seis cabecinhas de anjos alados. A cabeça está ligeiramente inclinada para o lado esquerdo e o sorriso é incrivelmente sereno (Figura 27); o olhar e as mãos postas asseguram a proteção que os fiéis lhe pedem, sobretudo na consagração que as Mães de S. M. da Feira lhe fazem de seus filhos, em cada dia 8 de Dezembro. No retábulo do altar de Nossa Senhora da Conceição está exposta a imagem da Senhora das Dores que se mostra na Figura 28. É uma imagem belíssima com cerca de 60 cm, da segunda metade do século XVIII, de madeira e com olhos de vidro. A Imagem representa Nossa Senhora sentada, com os braços e mãos clamando a atenção para a tragédia que sobre seu Filho se abateu; o seu ar sereno, apesar disso, e a nobreza do porte de seu corpo tornam impossível olhá-la com indiferença.
O retábulo da parede poente deverá ter sido também em talha de madeira dourada. No entanto, em finais do século XIX um incêndio consumiu esse primitivo retábulo, pelo que foi substituído pelo atual de estilo neoclássico (Figura 29). Nas “Memórias Paroquiais do século XVIII” sobre a Vila da Feira, era referida neste altar a presença de uma imagem “… da Senhora dos Prazeres, antigamente intitulada a Senhora do Campo…” (3). A imagem da Senhora de Campos que agora está no altar-mor tem um tamanho que não é adequado para o altar da parede poente; no entanto, poderá admitir-se que a imagem referida nas “Memórias Paroquiais do século XVIII” é a que agora está no altar-mor.
Atualmente neste altar estão as imagens de Nossa Senhora do Rosário (ou da Saúde?), Santo António e S. José.
Oposto à capela-mor está o coro alto, quase tocando a tribuna dos mesários na parede nascente (Figura 30); na parede sul tem duas janelas grandes e uma mais pequena, quase quadrada, com vista para o convento e o castelo. Entre as duas janelas grandes está colocada uma sanefa de talha da segunda metade do século XVIII (Figura 31), que em tempos esteve aposta ao retábulo da parede nascente. A tribuna dos mesários (Figura 32) tem pintado no teto, em arco rebaixado, o brasão de armas de Portugal (Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarve) do tempo de D. João VI e D. Pedro IV (Figura 33). A tribuna dos mesários dá para a sala do despacho que fica na zona nascente da igreja, e que tem anexa a sul outra sala com uma magnífica vista sobre o centro da cidade e o castelo. Para poente do coro alto ficam espaços correspondentes, que têm também acesso através da fachada principal da igreja.
A poente do corpo principal da igreja, onde funcionou a Aula de Latim, está a sacristia, com lavabo de espaldar em cantaria de granito e mesa central octogonal em pedra de Ançã, datada do século XVIII (Figura 34). Sobre um armário para guardar paramentos está um crucifixo e na parede estão colocados dois espelhos de sacristia (Figura 35).
A nascente do corpo principal da igreja está a capela do Senhor dos Passos. Como já foi referido, em 1787 a confraria do Senhor dos Passos pediu guarida à Misericórdia, o que levou à necessidade de fazer adaptação de espaços de modo a criar condições para concretizar a sua missão, nomeadamente a organização da Procissão de Quinta-Feira Santa; assim, para acomodar as suas imagens processionais de grande porte, a confraria ocupou o espaço da ampla sacristia que estava na ala nascente; a sacristia mudou-se para a ala poente onde funcionava a Aula de Latim. Não se sabe se essa Aula continuou a funcionar em espaço dividido com a sacristia, ou se foi transferida para o convento dos Lóios.
Uma porta de ferro forjado encimada por sanefa adornada com motivos da paixão (coroa de espinhos, lança e cana com esponja) data da altura em que a confraria do Senhor dos Passos se instalou Misericórdia (Figura 36). Do lado do interior da capela, esta porta é encimada por um fresco com a face de Jesus estampada no pano com que Verónica a limpou; a partir de 1787, e até finais do século XVIII, vários frescos foram pintados nas paredes da capela do Senhor dos Passos da Misericórdia; fazendo jus ao nome da confraria, os frescos representam sobretudo motivos da paixão de Cristo (Figura 37). Os frescos estiveram muito tempo cobertos por tinta, que foi recentemente retirada. Nos finais do século XIX, a confraria do Senhor dos Passos instalou na respetiva capela os altares onde atualmente estão expostas as imagens processionais de grande porte que a confraria trouxe para a Misericórdia. Sob o alto arco em frente à porta de acesso, anterior a 1768, esteve antes a imagem de S. Cristóvão com o Senhor Salvador do Mundo às costas, datada provavelmente do início do século XVIII. Esta imagem de roca com cerca de 3 m de altura costumava sair em procissão com ajuda de um penitente que se colocava no seu interior para a deslocar, com auxílio de espaços para visibilidade criados nas vestes do santo. Atualmente a imagem de S. Cristóvão está no lado nascente da capela (Figura 38). Pelas suas caraterísticas esta imagem é muito rara. Sob o arco que antes alojou a imagem de S. Cristóvão está atualmente um dos altares instalados em finais do século XIX, com as imagens do Senhor dos Passos e do Senhor Morto (Figura 39); estas imagens são de madeira articulada, provavelmente do século XVII. A Figura 40 mostra a imagem do Senhor dos Passos preparada para incorporar a Procissão de Quinta-Feira Santa, vestindo um magnífico vestido de veludo preto bordado a fio de prata, com dedicatória de oferta pela Condessa de Fijô em 1909. A imagem do Senhor Morto exposta no altar (Figura 43) pode ver-se em maior detalhe na Figura 41. A Figura 42 mostra esta imagem preparada para incorporar a Procissão de Quinta-Feira Santa como Senhor Morto na Cruz. O outro altar da capela do Senhor dos Passos expõe as imagens do Senhor da Cana Verde (Ecce Homo), da Senhora das Dores e de S. João Evangelista (Figura 43). A imagem do Senhor da Cana Verde (Figura 44) é de barro, provavelmente do século XVII. As imagens de roca da Senhora das Dores, e de S. João Evangelista são provavelmente datadas da mesma altura. As Figuras 45 a 47 mostram as mesmas imagens preparadas para incorporar a Procissão de Quinta-Feira Santa. Até 2012, as imagens do Senhor dos Passos, do Senhor Morto, do Senhor da Cana Verde, da Senhora das Dores e de S. João Evangelista eram por tradição incorporadas anualmente na Procissão de Quinta-Feira Santa. No entanto, a dificuldade de transporte processional das imagens em consequência do seu peso e a necessidade de as proteger de riscos tornaram indispensável a criação das suas réplicas. Por isso, em 2013 e 2014 foram mandadas esculpir réplicas em tamanho reduzido das imagens do Senhor dos Passos, do Senhor Morto e do Senhor da Cana Verde. As réplicas foram executadas sob coordenação do santeiro José Neves, responsável pela oficina de Arte Sacra de Fânzeres, Gondomar.